11 novembro, 2015

Passe Livre


Coluna Pedro Raposo Lopes



A TEMPO E MODO

É mais sensual uma mulher vestida do que uma mulher despida. 
A sensualidade é o intervalo entre a luva e o começo da manga. 
(Antônio Lobo Antunes)

A brisa que vinha do mar tão próximo acariciava a pele vincada de mais de oito décadas de existência. A brisa era morna e o velho sentia-se morno por dentro e por fora, naquela varanda quase debruçada sobre o mar.

No chão, uma garrafa de um vinho tinto que se demorara muito a escolher no pequeno armazém, como se escolhesse um livro ou um quadro. Entre os dedos, um charuto com que foi presenteado por um querido amigo, um dos poucos (charutos e amigos) que sobraram depois de tanto tempo.

Já um pouco inebriado, observava o velho a jovem morena que, nervosa, certamente esperava por seu amado na calçada em frente. Gestos, ademanes e impaciência o denunciavam. A brisa fazia com que a saia batesse e esfregasse suas pernas muito bem esculpidas, pernas morenas sobre sapatos de salto muito altos, cuidadosamente escolhidos para a ocasião, ou assim o velho supunha.

E o tempo foi passando e o vinho foi sendo bebido e o charuto foi sendo consumido. A morena, do outro lado da rua, irradiava ansiedade. Os passantes observavam a bela mulher com olhos cobiçosos. Homens e mulheres, cada qual com a sua motivação. Ela, nervosa, dava pequenos passos para os lados, arrastando o salto sobre o passeio.

À medida em que o vinho produzia seus efeitos benfazejos, os movimentos daquela jovem mulher pareciam-lhe cada vez mais lânguidos, num descompasso entre a percepção e a realidade, pois que evidentemente a morena estava (ou deveria estar) cada vez mais ansiosa pela demora do negligente amante.

Bem poderia ser proposital a tardança. Aquele que provoca a espera sabe exatamente a eficácia daquilo que se produz no metabolismo de quem aguarda. Os batimentos cardíacos aumentam em sístoles e diástoles descompensadas e descompassadas, o corpo emite sinais que podem ser captados à distância e, por mais sentimento de raiva que se saiba produzir, também se sabe que tudo se desvanecerá e se esfumará num milésimo de segundo com a chegada, ocasião em que a raiva que se sente do algoz se sublimará em gozo.

O véu da noite começava a encobrir o sol quando aquele que se fazia esperar chega afetando pressa (uma pressa fingida, percebeu o velho da sacada quase debruçada sobre o mar). Vinha vestido como um dândi. Sapatos lustrosos, chapéu panamá, um terno de linho muito branco que se compunha perfeitamente com a atmosfera local.

Ela, súbito, como da sacada quase debruçada sobre o mar o velho supunha que aconteceria (afinal, não se passam oitenta anos impunes), deixa-se abraçar e abraça sofregamente. Palavras são ditas na língua estrangeira que o velho pouco conhece e que, dali, daquela sacada quase debruçada sobre o mar, também não conseguiria ouvir, haja vista a distância que os separava. A mão do jovem posta na nuca da morena, sob os cabelos cuidadosamente penteados, possibilitava inferir com razoável dose de certeza tudo o que se dizia.

De braços dados, caminha o casal rumo ao mesmo hotel do velho. Ele, o jovem, com uma elegância muito artificial, mas convenientemente convincente. Ela, a morena, equilibrando-se naqueles saltos muito altos, um andar pouco elegante, mas que, tudo sopesado, em nada embotava a beleza do quadro.

Recolheu-se o velho para o interior do pequeno aposento que ocupava. Como o vinho tivesse acabado, serviu-se de uma dose de scotch da pequenina garrafa posta na bandeja sobre a também pequenina geladeira. Deitou-se. Recostou-se num par de travesseiros. Ouviu o inconfundível barulho dos saltos altos da morena percutirem no piso acimentado do corredor. Ouviu a porta do quarto ao lado fechar e a sacada quase debruçada sobre o mar abrir.

Levantou-se tão rápido quanto pôde da cama e, qual um adolescente, pôs-se a auscultar a parede, não tanto pela curiosidade, mas à feição de um torcedor do regozijo alheio.

Os rumores que vinham do quarto ao lado não davam margem a dúvidas. O jovem dândi despiu-se com pressa, arremessou o corpo da amada sobre a cama e, sem o necessário zelo que a ocasião predicava, desatou aquilo que lhe embaraçava a satisfação. Movimentos velozes e descuidados, muito provavelmente como aprendera nos modernos filmes. Gemidos de prazer seguiram-se ao ranger da cama e tudo estava consumado em questão de minutos.

O velho, um pouco desconsolado, servindo-se do restante da garrava de scotch, deitou-se no mesmo instante em que pôde ouvir a televisão do aposento ao lado iniciar sua litania em língua desconhecida.

Sentiu vontade de bater na porta do vizinho e dizer ao jovem que a vida só merece ser vivida se sorvida com vagar. A vida, como o corpo de uma bela mulher, deve ser desnudada com muito zelo. A contemplação é tão ou mais importante quanto a ação. Tudo a seu tempo e modo. Os dias merecem ser passados com delicadeza, como quem desata os botões da blusa da amada. A vida deve ser vivida momento a momento, como as presilhas de um corpete que devem ser desabotoadas uma a uma, sem pressa, cada qual deixando entrever aquilo que ainda está por vir. Por mais robusto que possa parecer (e o daquela morena certamente o era), o corpo de uma mulher é coisa sempre muito frágil e pode alquebrar-se se não for explorado como quem explora uma ruína de argila muito antiga, assim como a vida pode ser toda ela derruída num átimo, porque coisa também muito frágil. A vida, assim como o amor, não é uma permanente urgência. Oitenta anos não se passam impunes.



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